segunda-feira, 12 de maio de 2008

epifania, conta-gotas e outras coisas da vovó

minha lucidez dura até o despertador tocar, silenciar, tocar de novo, levar um tapa, tocar de novo, ser abafado, corrompido, e fielmente, insurgir a tocar de novo. de pé, eu sento. me desperto num processo doloroso, questionador, julgador, inconformado, perdedor, despeço do meu cliente horizontal, macio e quentinho, acato às ordens do meu juiz consciencial e me dirijo ao chuveiro. sem apelação.
minha lucidez é um sonho. lúdico. como tudo em minha casa. durmo numa caixa onde a tampa tem uma abertura com a minha forma, só permitindo entrar com a minha silhueta. o triângulo e o quadrado que fiquem com suas respectivas entradas.
acordo e volto a dormir. volto a dormir acordado. estou sempre dormindo acordado, e mantenho-me acordado dormindo. pra saber das novidades.
me levantei. me escovei, penteei, me vesti, ajeitei o cabelo, a escova, o pente, o pé direito alinhado. nunca coloquei todo amarelo junto. o vermelho também, sempre se mistura com o azul. sempre. cubos mágicos se tornam um inferno quando se é daltônico. por isso não dirijo. não permitem. na verdade eu sou piloto nato. de um zepelin, mas só dentro de casa, e aos fim-de-semana, claro. lúdico e pudico.
evito televisões e qualquer dispositivo eletrônico colorido que se mexa. transformei a televisão num aquário. deu tão certo que abri uma sucursal no microondas e na máquina de lavar.
mexerica, tangerina e bergamota, é um caso típico e relapso de esquizofrenia frugal. tratei do caso dela no café-da-manhã. a barba já está bem-feita. a barba está tão bem-feita que admiro-a no espelho. a barba está bem-feita demais. orgulho do papai. a barba bem-feita foi elogiada e pendurada na parede. como um quadro com vidro. na parede da mesa de jantar. a mesa de jantar dá pra sala. a sala dá pra cozinha. a cozinha dá pro quintal. o quintal tem um cais e um apito de navio ensurdecedor. a cama continua lá. me esperando. ela jogas as tranças, me penduro, sorrio pra minha encerada, embalsamada, mumificada (de modo esplêndido e perpétuo) barba-bem-feita. ela sorri de volta. cordial. deitado já não posso dormir. espero a visita do meu avô em vão. com todo o barulho aqui dentro ainda faz silêncio aqui fora. abro meu livro auto-biográfico e ilustrado na página trinta e três. a legenda estava lá esperando meu desenho. "sou um poço de profundidade intelectual rasa, uma unanimidade em algo que ainda está pra ser descoberto. este lado para cima aponta para todos os lados." fecho o livro e evito o marca-página dessa vez. coloco no calço falho do pé da mesa. derrubo os talheres e acordo meu deus. a chuva lá fora avança pra aqui dentro. começa na escada, me dá um chapéu e sai pelo ralo do banheiro. sem carona até a porta verifico a margem, confiro os parâmetros necessários, e retumbante me prontifico a utilizar. a partir de um cinto de utilidades dos meus verbos que eu levo mas não me leva a nada. eles apenas. um tipo raro de sujeito. de fato. um tipo raro de sujeito prescindido de predicado. um sujeito autônomo. ele dança sozinho na sala, observado pelos peixes, escorado no zepelin. a música é clara e singela, não tenha medo que nada é pior do que tudo.
penso no nome do meu próximo sobrinho. queria batizá-lo utilizando meus verbos. seu nome será aposto. e se for menina? ela se chamará.
enquanto devaneio, me dirijo do banco do passageiro para cama. o beijo de boa-noite nunca falha. faço um sinal da cruz , bato palmas e todas as luzes se apagam.
(meu broche do Fellini continua aceso, mas isso é um segredo nosso).

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