sábado, 20 de junho de 2009

devoto

era pra ser segredo, mas a gente já havia feito um estardalhaço aqui. abraço acolá. o ego, bolero e topete, charuto e hábitos cancerígenas, com toda aquela empáfia, chapéu panamá, terno da máfia, ora só, era um grande ressentido. por isso tudo aquilo. o ego gostava de aparecer, mas no fundo sabia que no fundo era outro que mandava. por trás, nos bastidores, na escotilha, sussurrando, cutucando e assobiando, bem alto e baixo, contornando a razão. contornar a razão até que era fácil, difícil era encontrar uma vaga pra estacionar.
o ego tinha sido eleito, mas não estava no poder. ele estava inconsciente disso. e um tanto ressentido.



vicissitudes. já vi de tudo. vide meu passado. é meio enrugado, mas quando molha, olha, incha bem e enche os olhos da criançada. elas gostam de histórias, principalmente aquela do pirata e do palhaço. o pirata tinha dentes de ouro e o palhaço insistia em chamá-lo de "meu cafetão, vem cá". um dia o pirata ficou furioso e enfiou sua perna de pano no olho do palhaço. sangraria pipoca doce, daquela vermelha, do carrinho da porta, do carinho dos pais, do fim do espetáculo, mas como era de plástico o olho do palhaço, fez tóin-póin e já estou de pé meu-cafetão-vem-cá.
o pirata jurava antepassados indígenas e por isso andava com o singelo pinguelo de fora. o palhaço havia lido um livro em outra língua e homenageou o autor com uma pose. o pirata espirrava em sânscrito quando sentia calafrios e nunca jantava sem antes confeccionar seus próprios talheres. o palhaço não via a hora, então se aproximou. achou justo um bocado de coisa, sentenciou a favor de todos e voltou adiante. pensou em humilhar alguém. pensou no pirata. cutucou o único olho bom e colocou o dedo úmido no seu ouvido. achou que deveria ridicularizar seus talheres com alhures. mas não sabia usar essa palavra. pensou em um dicionário, mas achou desprezível qualquer coisa que se proponha a explicar e utilize apenas uma cor. o pirata choraria se não tivesse emprestado seu coração ao papagaio. ele havia se apaixonado por uma pipa e entregou seu coração a ela. mas houve um problema de extradição e seu coração se perdeu em algum lugar entre o convés e um ciumento que não convém contar. se eu aumento a história seus olhos delatam, à direita e à esquerda, o cerne da questão: o palhaço não tinha amigos e o pirata não tinha idéia. o palhaço era extremamente popular e o pirata já preparava sua monografia de mestrado. o papagaio continuava apaixonado, esperando novos ventos bons, novos ventos fortes, novos ventos do norte, que, com sorte, traga sua pipa, e alcance sua rabiola, psiu-gatinha-que-gingado, e a convide pra dançar. a festa no ceú funciona melhor à noite. de dia o sol quer chamar muita atenção e ofusca os outros convidados. o palhaço permanece estático, sem respirar, jurando por todos seus brônquios que vai acabar com a greve, mas antes precisa saber que pose tão digna deve homenagear seu autor mais retumbante nas escala celsius, fahrenheit e aquela sísmica. o pirata sugeriu um esporro ensurdecedor. depois ele voltou atrás e pensou na flutuação. sintomática. flutuação sintomática rizomorfa. flutuação sintomática, rizomorfa de uma forma ovariocélica. o pirata, tenha se visto, não tinha problema com explicações monocromáticas. e podia passar horas xingando os debaixo apenas com elogios que ambos não imaginavam. afinal, não se imagina se não tem. era só pra distair e confundir, o que dava no mesmo. eles precisaram apenas de um trampolim e inventariam outro fim, se as crianças já não estivessem dormindo.



por que nenhum convite retornava, pensava ele. ele não podia responder a nenhum convite. ele não sabia como encarar aquele que escrevia. ele guardou sua caneta na gaveta e deixou a janela aberta terminar de dar conta nas folhas em branco, em cima da escrivaninha. era um pacto. ele insistia periodicamente. sempre que estivesse em casa. ele escrevia sempre fora de si. jamais tinha entrado. preferia assim, distante, do lado de fora. já havia se acostumado. mas gostava de companhia. escreveu e dessa vez fez questão de enviar pessoalmente. ele recebeu olhos nos olhos e não havia como disfarçar. era espelho demais, nítido demais. um passo pra atrás e um gesto de reverência e preocupação. ele era mono demais em tempos bipolares. raso. muito raso pra todos aqueles depressivos. ele era raso e mono. ele era meio tonto. ele lembrava o nôno. eles eram uno. eles mesmos. eles falavam com eles mesmos. eles respondiam sempre francamente. isso que fez durar a amizade. eles ignoravam suas respectivas correspondências. o outro misturava correspondência comum com as contas pra pagar. jogava tudo fora. o outro recolhia. não reconhecia a grafia. reconhecia a grafia. nos reconheceu: erámos todos ele. pegou no flagra. ali não se podia falar nada que não fosse no flagra. se não flagrasse, por favor, nem insista que não vou lembrar. acenou acima e apontou pros bastidores. vestiu seu chapéu panamá e se dirigiu ao palhaço. o pirata blasfemou em reverência a sua perspicácia. e ria sozinho, coitado, pensando que tinha pegado pesado com o moço do charuto. seus dentes de ouro reluziam e já se podia obervar o capuz escuro e brilhante do céu. diziam que o sol viraria abóbora e portanto nunca ficava até tarde. a lua iluminava todas as instâncias. quando seus pensamentos enfim, fez quase e entretanto.



era um rapaz tímido, do interior. tinha um modo próprio de pular fogueiras. era devoto de uma porção de santos. nem por isso deixava de se queimar. sonhava com a quadrilha e com a paçoca.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

É a mesma dança

Estático e paralisado, suspenso por instantes, seus olhos juram penitência máxima à visão, atentos e abertos. Jurando a todos que está profundamente, intrinsecamente, jamais-violável, absorto num assunto de tamanha importância que nada mais ao seu-meu redor tem a menor significância. A menor. Disfarçado de olhar congelado num ponto vago, tenta, em vão, mover o objeto a sua frente. Com o pensamento objetos ainda não se movem. Nem telepatia. Nem bluetooth. O pensamento anda meio obsoleto.

Extrovertido, rio de suas piadas sem graças tapinha nas costas promessas de visitas no fim-de-semana e por que não um churrasco que nunca acontecerá no feriado. Enquanto gesticulo e aumento uma história, que talvez nem tenha acontecido comigo, por dentro, manipulo um plano, infalível, meu amigo, infalível de combustão-instantânea movida a tédio. A qualquer momento, entre a soberba alheia-acima, e o sol diário, e único, dos monitores, uma flama, ardor elementar, amarelo, vermelho, laranja e azul caso seja gás de cozinha, ao som da harpa de Nero, cabum! incêndio, bombeiros corajosos, pessoas gritando, saltos quebrados, apressados primeiro, escada escura e esfumaçada. Saída de emergência.

O telefone toca e é a hora do café. Amargo-delícia. Um brinde. A moça do andar de cima ainda não sabe meu nome. Talvez por eu não saber o nome dela. No fundo, não sei o nome de ninguém. Através de apelidos pejorativos habituamo-nos ao normal, comedido e conformado. À prancheta retangular, à carteira linear, à esquerda ao direito com ponto final. Às linhas. À fila. Em pé e de calça. Assim por diante. Adiante uma ilusão, sempre adiante-radiante. Com direito a jingles e garotos-propaganda.

Aleijado e promíscuo, minhas chances devem ser poucas. Se os olhos são a janela da alma, fechados posso ter um momento de privacidade com ela. A alma desce de cima pra baixo e ao redor. Está na mente. Em algum aparato metafísico ou metalingüístico. Meto acentos e pontuações antiquadas: não serão eles que prescrevem o que eu penso prescrever.
O sapato ainda é o superego da civilização: límpido e correto por fora, aparenta o reflexo do que se aproxima. Por dentro contrai nossas pulsões vitais, impede o gozo do frescor e relaxamento, permite acesso a tribunais, barbearias e lugares em que devemos nos comportar. Crianças, sempre sábias, não usam sapatos.

Atento a todos os hífens e tremas. Atento aos acentos. Negligenciado crases. Estático, com todas sua paroxitoneidade, me proponho imóvel e fugidio. Meu olhar mira e escapa: é a alma tentando sair. O objeto continua parado, mesmo que a física jure movimento. Cética, a ciência peca. Meu confessionário é um disco de setenta e oito rotações. Meu testamento é em fá sustenido. Meu testemunho é somente minha sombra. Meu perfil-breu-infalível.

O amor é volátil e precisamente por isso deve ser extravasado. Existe quando se esvai, não se guarda em porções ou tapeware. Contempla-se e divide-se, como flores orientais. Amor, de verdade, só existe se declarado, calado jamais. Senão é só angústia. E daquelas que dá pedra nos rins. Cócegas tristes.

Quieto, sentado e disfarçado de reboco, as chances dele também devem ser poucas.
Um poeta desfolha bandeira e, ansiosos, esperamos pela manhã mais tropical de todas.

domingo, 12 de abril de 2009

Peréia

Já não tinha um nome, carregava um estigma. O surto-delícia durou o necessário e o suficientemente incontável, como provavelmente deveria ser. O livro arranhado era apenas uma forma de construir sem as mãos, sem a fala. Sem a fala ainda flui, sem a linguagem, dói. Construía em pensamento. Sempre elevados nas melhores das intenções. Afinal, ele errava como se bastasse ao homem o certo. Ora, como se apenas o certo nos bastasse. O que basta, afinal, quando o sentido somos nós que criamos? Nós, e isso inclui eles. Em todos os seus estágios. Em todas as margens. Em primeira, segunda e terceira instância. Jamais respectivamente. Não seria assim tão previsível, a não ser que você queira e, então, sinta-se à vontade a chamar alguém com a justa competência. Por aqui não se fala mais em competência. Nem em chance. Jamais em eficiência. Me torno violento se ouvir falar em desempenho. Principalmente ótimo. Aqui se fala apenas em volume, peso e textura. Se fala cromaticamente. É um impulso, não uma frase. É apenas um sintoma, não uma reflexão.O que vêm a mim não me pertence, e deve voltar para o adiante, o que fica, apenas, é um devir. Um vir a ser. Ciclicamente, cinicamente. Consciente apenas quando convém. Também tenho nome e um espaço só meu junto da catraca. Junto ao homem sem nome. Junto das senhoras cansadas e vividas. Todos de uniforme. Tenho direito a tudo que é pequeno e limitado quando obediente e regulado. Regulador. Fica a impressão de ter a satisfação apenas de pretender. Fingindo que me engano. Fingindo que te engano. Fingindo que me engana. Fingindo que não é conosco. O vai-e-vem de sempre é o meu pequeno eterno-retorno. O dia-a-dia me acompanha com minha sombra. Se repete. Como minha sombra me repete. Me acompanha sombriamente. Sóbria. Fria. Calculável. Bem delineada quando perto, embaçada quando longe. Não sou eu que controlo a luz nem a sua intensidade. Me engano quando penso que controlo que falo. Seria ingenuidade legítima pensar que controlo o que vejo. Sirenes avisam a hora de parar de conversar contigo. A hora em que você tapa os ouvidos para o quevem de baixo, para o que vem em roda, na ciranda. Pra o que canta e expõe o que é pra ser visto. Isso também não controlamos. A sirene desperta. Desvia. A sirene avisa: saia da frente. Corra. Almoce. Volte. Saia novamente. Páre. Estou parado. Mesmo em movimento. Mesmo em pensamento. Continuo parado mesmo com a Terra neuroticamente rodando ao redor do Sol. Psicótica. A Terra é linda. Perseverante, um dia ela consegue o que quer. Obsessiva, não enxerga mais ninguém. Um dia nós conseguimos o que queremos. Dar sentido ao que criamos. Criar com base no sentido. Sentir, criar, doar, receber em troca, ganhar. A tendência é adiante, sempre. O Sol se dá ao luxo de explodir. Aproveita. Aproveita e explode mesmo. Senta-te ao Sol e abdica. Sejamos reis todos nós! Reis e amigos dos poetas! Sejamos aquilo que prentedemos ser. Ao modo de Gandhi, ao modo de Nietzsche, à moda da casa. A prova dos nove é o meu parangolé hasteado nas minhas costas. Alegria em riste. A gravidade é burlada. A flutuação rizomática, perene e indelével foi homologada. Esqueçam as catracas. A condução fica por conta do maestro. Um instante!

sábado, 28 de fevereiro de 2009

reverência

Se Deus vive no céu, então provavelmente ele é um pássaro. O frango à passarinho de domingo - sagrado, claro - foi o mais próximo do transcendental que eu cheguei nos últimos anos. Aqui me detenho.


"Mas que importa isso a mim e a ti! Outros pássaros voarão mais longe!"


Demasiado humano. Erguia sua mão para o alto e aquilo sim era uma reverência, uma manifestação legítima, dessa vez, relíquia. Não poderia dizer daonde vinha aquilo que o impulsionava, mas sabia que por ali, naquele engradado se havia de encontrar os românticos. De todas as espécies. Inclusive os pássaros. Principalmente os pássaros.

Seu braço erguido era uma reverência. A repetição era anulada em pensamento. Por um breve momento, aquela sensação constante se torna plena e se eleva: pausa. Primeiridade é pura. O momento é do silêncio, ele é quem vai falar. Atônitos, todos se observam e anseiam. Como sempre, como usualmente se observavam e se ansiavam. Mas nesse timbre agudo e mudo do silêncio, nunca-jamais. A aflição do detalhe. Ponto. A volta do surdo, marcando os compassos, é retumbante. Equilíbrio e ritmo. O suspiro de alívio e a comoção gera prazer. É tudo marcado e constante. Adiante. É tudo aplanado e perene. Pra sempre. É só o momento, o instante. Amante. É só um surdo marcado. Pesado.


Um Livro para Espítiros Livres


Ele jamais poderia acompanhar. Mas o outro sim era um cântico de alegria. O do braço erguido. Punho firme e celeste. Entre cometas e passarinhos, se dispunha erigido e falante. Era um cantador. E possivelmente todos éramos naquele engradado. Ainda somos. Mesmo fora. O engrado foi apenas uma tentativa metafísica do sujeito. Só funcionaria como um engrado pagão. Senão, não.


Ele fez um poema, guardaremos para um outro momento. Poemas são atemporais, de um maneira interessantemente instantânea.


Eis o Homem. Ele só acreditava na autenticidade de um pensamento que nos motivasse a dançar. Foi o Oswaldo que retirou dos meus pensamentos os códigos pra lá de adequados. Apenas isso, não conheço eles. Nem suponho conhecer. Perceber, sim, é um princípio levado adiante. Elevado adiante. Pássaros nas proximidades.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

calvo

era algo como um pressentimento se não tivesse vindo pelo correio. as malas-diretas me tratam com um requinte que não carrego nos meus bolsos das minhas calças dos meus cotidianos. mesmo percebendo de que nada ali, no transitório e escapulível, absolutamente escapulável, dia-a-dia do corpo-a-corpo de todos os nossos santos-dias seja meu de verdade. minha é aquela sensação quase pertubadora se não fosse a muralha impecável de tijolos de orgulho cimentados entre si numa fé pagã do sucesso imediato e irrecusável, e atemporal, e imprevisível, há de arrebatar as estruturas limitadas. onde eu estava? perambulando pelo prato do almoço, em sentido anti-horário contagio de todo o molho da massa o ingênuo arroz pálido, esquálido e solitário em seu amontoado. o arroz não é orgulhoso, se mistura, se espalha, se atreve a pular fora, abraça, beija, cumprimenta a todos ali. e, enfim, minha posse, minha mesmo, só a calvície que eu herdei do meu avô. pensei que ela era minha e voltarei cada vez que pensasse nela e naqueles momentos e instantes de tão prazerosos e estes sim, orgulhosos e obstinados a não voltar, sucumbidos às mais tenras sensações e: vejo o arroz escapulir novamente. de todos os devaneios criminosos o passeio pela praia é provavelmente o mais perigoso. o instante da brisa, e é bem possível que só tenhamos, de fato, calvícies e instantes, condena, meliantemente, o seu passado triste e perdido na confusão cinza e barulhenta da vida longe do mar. a paranóia é uma criança atrevida e mal-educada que precisa da nossa correção mental para o seu, meu, nosso prórpio bem. não deixe ela falar o que quer. comporte-a. compotas de pêssego e momentos delícia. ah, o mar...o mar não me cabe definição. o que é infinito à linha do horizonte não me permite, de nenhuma forma, cercear. definir é cercear uma pancada de coisas. determinar é inútil já que tudo é tão passageiro. em compensação poderia falar milhares de vezes das minhas aventuras pelas ondas, pelas sereias, peladas, polidas, enfeitadas, estrangeiras e de toda mobília que achei no oceano. o que cabe na sala eu coloco, de resto, vira ornamento pra caçamba e porta-seres-vivos ainda não protagonistas dignos de nossa percepção focada e intimidante, visto de baixo. calabouços, arcas, baús, engradados, caixas de fóforos, óleos de soja, complexos infantis envolvendo sociabilidade conflitantes e assim por diante. faz parte do mar. do que se trata afinal todo aquele princípio? vejamos: sentado de forma inglesa, dispõe seu livro de ilustrações predileto, todos do Magritte. agride o pulmão mas não perde o estilo: rasga um cachimbo e acende-o na boca. a mão esquerda se livra do fósforo e acena ao longe para o garçom. o hábito que faz o padre, que não precisa aprender a missa, que remonta, a remissa, prendada, a cortiça, nas juninas festas de João, supera neologismos e prolixias vis. limado, correto, ascepticamente conduz a cerveja. do balcão para mesa. pesado. da mesa ao balcão. leve. mas o que importa, dizia o roteirista, é o diálogo gestual entre nosso protagonista, heróis de todos os tempos, e o público, escancarado em suas poltronas velhas. dotado de um perfil britânico, com sua barba escocesa, um temperamento irlandês, e, como o mundo anda globalizado, um coração indiano, ele pausadamente abriu o jornal. se deparou com o deplorável, desprezível e inominável, começou a chorar por dentro, chego que não me agüento, de contar essa história. sem moral, claro. seu chapéu de côco se confunde na chuva. de volta ao seu lugar protege a vista. à vista, somente pessoas iguais. um tipo de paisagem cinética. deixa os pés para trás e revolve ao seu canto. e nós, voltamos para nossa cantiga, antiga e atonal, coisa de gente treinada na raça.
momento solene. um gesto do maestro e me proponho sem dúvida a começar. esta eu sei de cor. estou careca de saber. respiro fundo e ando mais calvo agora. toco sempre igual.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

itinerário

música é boa e faz a gente esquecer do trabalho. barulho é ótimo quando você não quer se concentrar, mas realmente te atrapalha quando tenta ouvir teus pensamentos bons, em geral, aquele rouco, no canto, tímido, quase esvaindo. ah, as idéias ruins... é porque elas não são úteis, senão você veria como eu seria solicitado. já posso escutar meu telefone tocando e eu acenando à secretária, de modo que ela entenda que eu "não estou". toda arte é arte quando se trata de emancipação. quando não se trata de nada, daí é niilismo. artístico. e a vida, malambujada (pra ficar só nos adjetivos de família) ela também é arte, segundo alguns artistas. e se a vida não se trata de emancipação, e apenas coerção, assunção, compreensão racional do estúpido, daí, minha nossa senhora, prepara manto e a luz, que vai sobrar lamúria.
sempre à espreita existe uma certa quantidade de realidade. mas tem que se esforçar. tem que jurar que aquilo que você vê em superfícies que não pertencem às três dimensões não são reais. o que é imagem colorida, impressa ou representada por milhares de pixels, filho meu, não é real. real mesmo é aquilo do lado de fora do ônibus. infelizmente. igonorar o real é justo e legítimo. até apelando pra entorpecentes. mas daí tem aquele problema da falta de criatividade. mais interessante são as figuras de linguagem. é como xadrez, só que mais rico que o preto e branco. quem sabe usar se diverte muito. quem não domina as técnicas de montagem e desmanche de aliterações, rimas, pleonasmos e coisas que produzem um efeito literário engraçado, pra ficar no adjetivo mais simplório (a Macabéa era engraçada), fica só a admirar. o que já é bom. admirar é uma atividade que faz um bem pros olhos. às vezes tem que admirar de olhos fechados de tão bem que faz pra vista. jogar xadrez, compôr com figuras de linguagem e perceber a realidade pra fora do ônibus também são artes. não necessariamente de emancipação. mesmo que pessoas talentosas e esforçadas consigam ajustar os dois lados imprescindíveis. vou voltar ao plausível, palco de Pasárgadas íntimas e exclusivas, solicitações de devaneios e desvios de conduta daquilo que se espera, saúde mental mesmo. o ônibus ainda não me surpreende. continua passando todos os dias. mas tem algo ali fora que ainda vale a atenção. somos nós parados esperando. ao nosso lado, nós dois. poderíamos estar conversando e trocando informações precisas de nada que vá valer alguma coisa no mercado ou na aquisição de qualquer coisa. mais cedo ou mais tarde a gente deve ficar sabendo pra onde vai esse ônibus. eu só conheço o ponto que eu desço. a gente sempre repara nas pessoas que sobem e muito pouco nas que descem. e dou o sinal e o motorista me ignora. ignição. sento resignado. abro o jornal e tenho certeza que o mundo está de brincadeira comigo. ainda dá tempo de voltar àquela praia e construir aquelas coisas. mesmo de areia, mesmo que o mar acabe com tudo no dia seguinte. existe alguma coisa de valioso naqueles instantes que fazem tudo isso (e quando me refiro a "tudo isso" não se espante com metáforas desavergonhadas, porque de fato, não sei ao certo do que se trata tudo isso, está a aberto a interpretações, vis e pueris, de preferência) valer a pena. ainda dá tempo, o mais curioso e pode até ser triste, mesmo afastando de cara a tristeza, e é essa sempre a intenção, mesmo que mal-sucedida (o que seria da experiência da vida se não fosse nossas opções mal-sucedidas?), a idéia é que ainda dá tempo. o garfo do almoço de ontem funcionou como diapazão. o lá não estava lá então afinei de ré. a viola é velha e ainda faz comida boa. a música alimenta e emancipa se tocada de coração (foi um passarinho pra lá de esperto que me contou). liguei avisando que hoje estava doente.

domingo, 17 de agosto de 2008

monólogo

bege é uma cor que, de tão triste às vezes é suicida. portanto, deve sempre estar acompanhada de cores sóbrias e equilibradas. não queremos cromocídios. mas cores alegres destoam, e por isso irritam o bege, coitado. o bege sempre deve estar acompanhado, sempre. na essência ainda sou o mesmo, apenas me tornei mais tolerante à vida e todos os seus aspectos repressores e conformistas. fiz um samba-canção. nada rimava com nada. era profundo demais e utilizava metáforas que só eu entendia. ninguém gostou. por isso nem eu. nem nós. fadado a solar na escala de um dó sustenido, sempre amparado por retóricas fáceis, de chassi de caminhão. o medo maior era o branco. o ideal era o argumento sincopado. a cor sincopada. elas eram todas plenas, até as secundárias. precisava de alguma mancha. e escutá-la. minha primeira experiência Gestalt foi à base de molho de tomate. interpretei "descoordenado". não ressoava e isso que me deixava intranqüilo.
- ressoa!
foi em vão. os pássaros riam. e iam. o rio que havia ali foi aterrado. genial. se ainda houvesse o rio, poderia escutar o som do azul. mas dessa vez do azul doce do rio. riam. e assim se foi. em silêncio. o burburinho se esconde por trás de algum lugar da posição cromática. eles não me enganam e eu espero que eles saibam disso. minha filosofia é focada demais, não presta. abandonei a semiologia. me dizia muita coisa, mas de modo muito monocromático. vou voltar para o meu sertão. lá pra minha tribo que ainda me espera. pequeno pássaro azul. um ideograma de urucum que explica. e ressoa. alto demais. só os pássaros conseguem compreender porque são os únicos a voar tão alto. tão alto quanto o ressoar da minha vestimenta à base de urucum. a cor é uma vestimenta. o som é uma armadura. a poesia é letal, meu filho. uso-a com cuidado. vermelho. vermelha. o azul é sempre o mesmo. o gênero da cor só importa quando altera a gravidade do timbre. o azul é profundo e talvez seja por isso que passo a persegui-lo. tão profundo quando meu samba-canção. tão profundo que às vezes fica melancólico e triste. daí mantenho o bege à distância, só por precaução. detesto mortes trágicas. de rios e cores. daí sobra o cinza. sobre cinza. e estacionamentos. uma dialética entre o horizontal e o vertical. prédios espelhados, altos e completamente desnecessários. estacionamentos abaixo preservam aquilo que nos deteriora. asseguram que nenhuma planta passe por perto. começaram pelos rios, passaram às árvores. mais cedo ou mais tarde chegarão na gente. por isso que eu volto e componho músicas sem graça. a falta de talento não me desestimula. o que me desestimula mesmo é o prazo. e farto de todos os bilhetinhos corporativos de três dígitos que recaem sobre minha caixa postal mensalmente. faço da minha tralha (minha rede, minha malha, da boa), talher e toalha, uma trouxa, por eu que não sou besta de ficar aqui à toa.
com o dedo indicador eriçado junto ao nariz, ameacei e fiz uma promessa que já esqueci. o que pertence ao devir deve ser, momentaneamente, negligenciado. o arco-íris foi patenteado, e agora tudo que for colorido demais corre o risco de ser confundido com uma alegria que talvez não seja bem essa que você gostaria de transmitir. por isso o som. alto. autos, não. são barulhentos, poluidores. buzina atrapalha os namorados da frente, enfarta passarinhos e ofendem mães alheias. buzina é um rosa-choque saturado na retina de uma criança. crianças, pelo menos elas, deveriam ser poupadas. os passarinhos também. E todas as plantas. idiólatra, o ser humano moderno não perde esse hábito. algo me diz que o perigo dessa passagem ser irrelevante recai mais sobre o monótono da cor do que o monólogo do discurso.