segunda-feira, 26 de maio de 2008

Nietzsche, Deus e a Roda

Nietzsche dizia que nós, seres humanos, buscamos sentido para tudo. brilhantemente escreveu que preferimos querer o nada, a nada querer. inventamos Deus para dar sentido às coisas.
Nietzsche é frequentemente mal-interpretado, por isso me abstenho de culpa por escrever algo equivocado sobre ele. eu costumo interpretar as coisas equivocadamente porque tenho dificuldade em entender o mundo. isso explica meus pouco colegas no primário, entre eles um vaso de planta, mas isso é uma outra história.
o que importa é que Deus, sendo inventado, desbancou a Roda como principal invenção da humanidade. tá certo que a Roda não causou tantas guerras quanto Ele, mas ela também permitiu uma locomoção maior das bigornas para a frente de batalha.
Deus é fundamental para sintomas de solidão. mesmo quando se mora numa cidade extremamente populosa, cheia de pessoas e barulho, é comum o sentimento de ser e estar sozinho, o que impulsiona vontades suicidas. para isso Deus ajuda (pra combater o sentimento de solidão, não as vontades suicidas). funciona quando você pensa que não está sozinho e que sua vida, por mais pacata, triste e inútil que pareça, na verdade tem um sentido e Deus tem um missão pra ti. daí, após inventar Deus, nós, seres humanos, criaturas de aptidão para invenções, inventamos uma missão. e tentamos segui-la. auto-ajuda busca mais ou menos esse princípio. ela te proporciona uma missão bem facinha. auto-ajuda é uma missão café-com-leite para a vida. ninguém perde. nem o leitor, nem o escritor, muito menos a editora. auto-ajuda, Deus e invenções são algo muito antigo. gritos de guerra é uma espécie de auto-ajuda. dos machões.
é bem simples e direto. somos bons, eles são ruins, portanto vamos acabar com eles. mas isso de um modo mais agressivo, recheado de palavrões. eu jogo num time que é assim. antes de cada jogo, nos reunimos e gritamos. e ai de quem discordar. é enxutado a ponta pés e safanão no pé da orelha.
grito de guerra é uma espécie de auto-ajuda coletiva, assim como religiões. times de futebol não substituem religiões, mas funcionam como genérico. assim como auto-ajuda, há religiões que propõe missões bem fáceis, como doar e orar. outras religiões impõe condições desagradáveis, como auto-explosões e mortes. dizem que Deus está por trás de tudo. a Roda continua correndo por fora, levando carros, pousando aviões e animando a criançada na sua versão gigante.
Nietzsche provavelmente gostava mais da Roda do que de Deus. Nietzsche não tinha religião nem time de futebol. tinha um bigode. times de futebol correm atrás de uma bola que é uma espécie de Roda só que mais plena. Deus é pleno, mas não inventou nem a Roda, nem a bola, e dizem as más línguas, nem Nietzsche. Nietzsche tinha um pai e uma mãe. Deus é órfão, coitado. Nietzsche tinha uma doença crônica. morreu cedo e avariado da cabeça. apesar do bigode, Nietzsche tinha uma auto-estima elevada. Deus é o ser mais elevado que tem. a Roda ainda ajuda a elevar as coisas.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

um desmanche

percebi que me tornaria novamente solteiro quando ela começou a escutar 'hey jude' cinco vezes ao dia.
ela chorou,
falou sobre o futuro dela, da minha impassividade,
citou as vontades dela, do meu estilo incólume,
cantou suas qualidades, do seu lado artístico,
intimou contra meus defeitos, citou alguém que não me recordo
e correu pro banheiro.
dormi.
fim.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

tratado sobre a insônia - parte I

côncavo. convexo. em vão, me proponho a condições inusitadas na cama. o sono é o pior dos meus aliados. aliás, sempre atrasado, displicente e com tendências à insubordinação no meio da madrugada. estou quase pra me livrar deste fardo. como mulher de malandro, me deixa aqui esperando, tarde da noite. por onde ele anda à essa hora que deveria estar aqui?
de manhã, de ressaca, ele aparece, me enganando, pegajoso, cansativo...
mau caráter, meu sono é do tipo inconveniente.
quando estou no cinema concentrado, ele pede atenção.
quando me despeço e vou ao trabalho, me persegue.
agiota, vingativo, me arrebata com juros depois do almoço.
a última vez que nos desfizemos, foi quando apareceu aquela moça doce de sorriso fácil. meu sono aos poucos foi me evitando, percebendo que não podia dar atenção a ele enquanto pensasse nela.
mas isso é passado. hoje eu conto com ele pro dia de amanhã. eu sei que não vou longe sem ele.
a ausência do meu sono me perturba, me adoece. e as pessoas já reparam no nosso desquite.
apontam no meu rosto, no meu cabelo, no meu entusiasmo.
diziam que nossos hábitos eram incompatíveis. ele tinha repulsa ao meu café preto.
hoje, prostrado, eu decoro cada vicissitude do teto.
fecho os olhos, tento apenas esquecer, e já posso escutar seus passos trôpegos se aproximando.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

epifania, conta-gotas e outras coisas da vovó

minha lucidez dura até o despertador tocar, silenciar, tocar de novo, levar um tapa, tocar de novo, ser abafado, corrompido, e fielmente, insurgir a tocar de novo. de pé, eu sento. me desperto num processo doloroso, questionador, julgador, inconformado, perdedor, despeço do meu cliente horizontal, macio e quentinho, acato às ordens do meu juiz consciencial e me dirijo ao chuveiro. sem apelação.
minha lucidez é um sonho. lúdico. como tudo em minha casa. durmo numa caixa onde a tampa tem uma abertura com a minha forma, só permitindo entrar com a minha silhueta. o triângulo e o quadrado que fiquem com suas respectivas entradas.
acordo e volto a dormir. volto a dormir acordado. estou sempre dormindo acordado, e mantenho-me acordado dormindo. pra saber das novidades.
me levantei. me escovei, penteei, me vesti, ajeitei o cabelo, a escova, o pente, o pé direito alinhado. nunca coloquei todo amarelo junto. o vermelho também, sempre se mistura com o azul. sempre. cubos mágicos se tornam um inferno quando se é daltônico. por isso não dirijo. não permitem. na verdade eu sou piloto nato. de um zepelin, mas só dentro de casa, e aos fim-de-semana, claro. lúdico e pudico.
evito televisões e qualquer dispositivo eletrônico colorido que se mexa. transformei a televisão num aquário. deu tão certo que abri uma sucursal no microondas e na máquina de lavar.
mexerica, tangerina e bergamota, é um caso típico e relapso de esquizofrenia frugal. tratei do caso dela no café-da-manhã. a barba já está bem-feita. a barba está tão bem-feita que admiro-a no espelho. a barba está bem-feita demais. orgulho do papai. a barba bem-feita foi elogiada e pendurada na parede. como um quadro com vidro. na parede da mesa de jantar. a mesa de jantar dá pra sala. a sala dá pra cozinha. a cozinha dá pro quintal. o quintal tem um cais e um apito de navio ensurdecedor. a cama continua lá. me esperando. ela jogas as tranças, me penduro, sorrio pra minha encerada, embalsamada, mumificada (de modo esplêndido e perpétuo) barba-bem-feita. ela sorri de volta. cordial. deitado já não posso dormir. espero a visita do meu avô em vão. com todo o barulho aqui dentro ainda faz silêncio aqui fora. abro meu livro auto-biográfico e ilustrado na página trinta e três. a legenda estava lá esperando meu desenho. "sou um poço de profundidade intelectual rasa, uma unanimidade em algo que ainda está pra ser descoberto. este lado para cima aponta para todos os lados." fecho o livro e evito o marca-página dessa vez. coloco no calço falho do pé da mesa. derrubo os talheres e acordo meu deus. a chuva lá fora avança pra aqui dentro. começa na escada, me dá um chapéu e sai pelo ralo do banheiro. sem carona até a porta verifico a margem, confiro os parâmetros necessários, e retumbante me prontifico a utilizar. a partir de um cinto de utilidades dos meus verbos que eu levo mas não me leva a nada. eles apenas. um tipo raro de sujeito. de fato. um tipo raro de sujeito prescindido de predicado. um sujeito autônomo. ele dança sozinho na sala, observado pelos peixes, escorado no zepelin. a música é clara e singela, não tenha medo que nada é pior do que tudo.
penso no nome do meu próximo sobrinho. queria batizá-lo utilizando meus verbos. seu nome será aposto. e se for menina? ela se chamará.
enquanto devaneio, me dirijo do banco do passageiro para cama. o beijo de boa-noite nunca falha. faço um sinal da cruz , bato palmas e todas as luzes se apagam.
(meu broche do Fellini continua aceso, mas isso é um segredo nosso).

segunda-feira, 5 de maio de 2008

com a licença de uma pergunta besta

dentro das possibilidades vigentes, não cabe a mim, réles mortal honoris causa, disseminar, proferir e emancipar assuntos de importância relevante. não a mim. deixo os assunto importantes aos grandes homens com seus grandes intelectos e grande prestígio, e queira deus, pinto pequeno, que é o que eles merecem. enfim. me contento com as pequenas dúvidas da vida, aquelas que duram até a próxima partida de Paciência, Freecel, ou, se você anda espertinho, Campo Minado. entre um suspiro profundo e um olhar semi-cerrado, trago à luz uma questão que sempre me incomodou. não que eu seja um ás de probabilidade, logística, ou qualquer outro método que não utilize lápis de cor e que serve pra medir tua capacidade de ser inteligente. mas arrisco-me a palpitar sobre o tema. baseado naquela premissa de que "um raio não cai duas vezes no mesmo lugar" (longe de ter alguma relação com aquela outra de "um mesmo homem não entra duas vezes no mesmo rio") fica no ar uma coisa que eu não entendo: já repararam que lotérica, quando tem um vencedor que apostou naquele estabelecimento, coloca em seguida um banner, com letras garrafais, escrito algo do tipo "mega sena ganhador saiu daqui!"? na minha cabeça, a chance de sair um vencedor da mega sena, uma aposta nacional, novamente naquela mesma lotérica são ínfimas. a tendência é sair vencedores em outras casas de aposta. ou seja, é impressão minha ou eles estão matematicamente amaldiçoando o local?
Isso me leva a conclusão de que, a sorte, dentro da sua imprevisibilidade ontológica, ao contrário do que dizem nossos contemporâneos experts em qualquer coisa, continua sendo o valor intangível mais importante de, pelo menos, um determinado tipo de empresa, desbancando assim o famoso branding e seus tentáculos invisíveis.
toma essa Naomi Klein!