quarta-feira, 27 de maio de 2009

É a mesma dança

Estático e paralisado, suspenso por instantes, seus olhos juram penitência máxima à visão, atentos e abertos. Jurando a todos que está profundamente, intrinsecamente, jamais-violável, absorto num assunto de tamanha importância que nada mais ao seu-meu redor tem a menor significância. A menor. Disfarçado de olhar congelado num ponto vago, tenta, em vão, mover o objeto a sua frente. Com o pensamento objetos ainda não se movem. Nem telepatia. Nem bluetooth. O pensamento anda meio obsoleto.

Extrovertido, rio de suas piadas sem graças tapinha nas costas promessas de visitas no fim-de-semana e por que não um churrasco que nunca acontecerá no feriado. Enquanto gesticulo e aumento uma história, que talvez nem tenha acontecido comigo, por dentro, manipulo um plano, infalível, meu amigo, infalível de combustão-instantânea movida a tédio. A qualquer momento, entre a soberba alheia-acima, e o sol diário, e único, dos monitores, uma flama, ardor elementar, amarelo, vermelho, laranja e azul caso seja gás de cozinha, ao som da harpa de Nero, cabum! incêndio, bombeiros corajosos, pessoas gritando, saltos quebrados, apressados primeiro, escada escura e esfumaçada. Saída de emergência.

O telefone toca e é a hora do café. Amargo-delícia. Um brinde. A moça do andar de cima ainda não sabe meu nome. Talvez por eu não saber o nome dela. No fundo, não sei o nome de ninguém. Através de apelidos pejorativos habituamo-nos ao normal, comedido e conformado. À prancheta retangular, à carteira linear, à esquerda ao direito com ponto final. Às linhas. À fila. Em pé e de calça. Assim por diante. Adiante uma ilusão, sempre adiante-radiante. Com direito a jingles e garotos-propaganda.

Aleijado e promíscuo, minhas chances devem ser poucas. Se os olhos são a janela da alma, fechados posso ter um momento de privacidade com ela. A alma desce de cima pra baixo e ao redor. Está na mente. Em algum aparato metafísico ou metalingüístico. Meto acentos e pontuações antiquadas: não serão eles que prescrevem o que eu penso prescrever.
O sapato ainda é o superego da civilização: límpido e correto por fora, aparenta o reflexo do que se aproxima. Por dentro contrai nossas pulsões vitais, impede o gozo do frescor e relaxamento, permite acesso a tribunais, barbearias e lugares em que devemos nos comportar. Crianças, sempre sábias, não usam sapatos.

Atento a todos os hífens e tremas. Atento aos acentos. Negligenciado crases. Estático, com todas sua paroxitoneidade, me proponho imóvel e fugidio. Meu olhar mira e escapa: é a alma tentando sair. O objeto continua parado, mesmo que a física jure movimento. Cética, a ciência peca. Meu confessionário é um disco de setenta e oito rotações. Meu testamento é em fá sustenido. Meu testemunho é somente minha sombra. Meu perfil-breu-infalível.

O amor é volátil e precisamente por isso deve ser extravasado. Existe quando se esvai, não se guarda em porções ou tapeware. Contempla-se e divide-se, como flores orientais. Amor, de verdade, só existe se declarado, calado jamais. Senão é só angústia. E daquelas que dá pedra nos rins. Cócegas tristes.

Quieto, sentado e disfarçado de reboco, as chances dele também devem ser poucas.
Um poeta desfolha bandeira e, ansiosos, esperamos pela manhã mais tropical de todas.