sábado, 20 de junho de 2009

devoto

era pra ser segredo, mas a gente já havia feito um estardalhaço aqui. abraço acolá. o ego, bolero e topete, charuto e hábitos cancerígenas, com toda aquela empáfia, chapéu panamá, terno da máfia, ora só, era um grande ressentido. por isso tudo aquilo. o ego gostava de aparecer, mas no fundo sabia que no fundo era outro que mandava. por trás, nos bastidores, na escotilha, sussurrando, cutucando e assobiando, bem alto e baixo, contornando a razão. contornar a razão até que era fácil, difícil era encontrar uma vaga pra estacionar.
o ego tinha sido eleito, mas não estava no poder. ele estava inconsciente disso. e um tanto ressentido.



vicissitudes. já vi de tudo. vide meu passado. é meio enrugado, mas quando molha, olha, incha bem e enche os olhos da criançada. elas gostam de histórias, principalmente aquela do pirata e do palhaço. o pirata tinha dentes de ouro e o palhaço insistia em chamá-lo de "meu cafetão, vem cá". um dia o pirata ficou furioso e enfiou sua perna de pano no olho do palhaço. sangraria pipoca doce, daquela vermelha, do carrinho da porta, do carinho dos pais, do fim do espetáculo, mas como era de plástico o olho do palhaço, fez tóin-póin e já estou de pé meu-cafetão-vem-cá.
o pirata jurava antepassados indígenas e por isso andava com o singelo pinguelo de fora. o palhaço havia lido um livro em outra língua e homenageou o autor com uma pose. o pirata espirrava em sânscrito quando sentia calafrios e nunca jantava sem antes confeccionar seus próprios talheres. o palhaço não via a hora, então se aproximou. achou justo um bocado de coisa, sentenciou a favor de todos e voltou adiante. pensou em humilhar alguém. pensou no pirata. cutucou o único olho bom e colocou o dedo úmido no seu ouvido. achou que deveria ridicularizar seus talheres com alhures. mas não sabia usar essa palavra. pensou em um dicionário, mas achou desprezível qualquer coisa que se proponha a explicar e utilize apenas uma cor. o pirata choraria se não tivesse emprestado seu coração ao papagaio. ele havia se apaixonado por uma pipa e entregou seu coração a ela. mas houve um problema de extradição e seu coração se perdeu em algum lugar entre o convés e um ciumento que não convém contar. se eu aumento a história seus olhos delatam, à direita e à esquerda, o cerne da questão: o palhaço não tinha amigos e o pirata não tinha idéia. o palhaço era extremamente popular e o pirata já preparava sua monografia de mestrado. o papagaio continuava apaixonado, esperando novos ventos bons, novos ventos fortes, novos ventos do norte, que, com sorte, traga sua pipa, e alcance sua rabiola, psiu-gatinha-que-gingado, e a convide pra dançar. a festa no ceú funciona melhor à noite. de dia o sol quer chamar muita atenção e ofusca os outros convidados. o palhaço permanece estático, sem respirar, jurando por todos seus brônquios que vai acabar com a greve, mas antes precisa saber que pose tão digna deve homenagear seu autor mais retumbante nas escala celsius, fahrenheit e aquela sísmica. o pirata sugeriu um esporro ensurdecedor. depois ele voltou atrás e pensou na flutuação. sintomática. flutuação sintomática rizomorfa. flutuação sintomática, rizomorfa de uma forma ovariocélica. o pirata, tenha se visto, não tinha problema com explicações monocromáticas. e podia passar horas xingando os debaixo apenas com elogios que ambos não imaginavam. afinal, não se imagina se não tem. era só pra distair e confundir, o que dava no mesmo. eles precisaram apenas de um trampolim e inventariam outro fim, se as crianças já não estivessem dormindo.



por que nenhum convite retornava, pensava ele. ele não podia responder a nenhum convite. ele não sabia como encarar aquele que escrevia. ele guardou sua caneta na gaveta e deixou a janela aberta terminar de dar conta nas folhas em branco, em cima da escrivaninha. era um pacto. ele insistia periodicamente. sempre que estivesse em casa. ele escrevia sempre fora de si. jamais tinha entrado. preferia assim, distante, do lado de fora. já havia se acostumado. mas gostava de companhia. escreveu e dessa vez fez questão de enviar pessoalmente. ele recebeu olhos nos olhos e não havia como disfarçar. era espelho demais, nítido demais. um passo pra atrás e um gesto de reverência e preocupação. ele era mono demais em tempos bipolares. raso. muito raso pra todos aqueles depressivos. ele era raso e mono. ele era meio tonto. ele lembrava o nôno. eles eram uno. eles mesmos. eles falavam com eles mesmos. eles respondiam sempre francamente. isso que fez durar a amizade. eles ignoravam suas respectivas correspondências. o outro misturava correspondência comum com as contas pra pagar. jogava tudo fora. o outro recolhia. não reconhecia a grafia. reconhecia a grafia. nos reconheceu: erámos todos ele. pegou no flagra. ali não se podia falar nada que não fosse no flagra. se não flagrasse, por favor, nem insista que não vou lembrar. acenou acima e apontou pros bastidores. vestiu seu chapéu panamá e se dirigiu ao palhaço. o pirata blasfemou em reverência a sua perspicácia. e ria sozinho, coitado, pensando que tinha pegado pesado com o moço do charuto. seus dentes de ouro reluziam e já se podia obervar o capuz escuro e brilhante do céu. diziam que o sol viraria abóbora e portanto nunca ficava até tarde. a lua iluminava todas as instâncias. quando seus pensamentos enfim, fez quase e entretanto.



era um rapaz tímido, do interior. tinha um modo próprio de pular fogueiras. era devoto de uma porção de santos. nem por isso deixava de se queimar. sonhava com a quadrilha e com a paçoca.